☀️ Verão Fantasma e representação queer
Qual é a estética queer que queremos e precisamos?
Vi esse filme já faz um tempinho, na mostra online do Floripa Que Horror!, festival de cinema de, bom, horror. Eu ia originalmente ver esse filme na sua estreia no Cinefantasy, mas acabou que no dia passei mal e acabei não indo. Tô me mordendo de raiva até agora. Esse filme foi dirigido pelo Matheus Marchetti (inclusive somos mutuals no Twitter, o que significa que ele é o meu BFF, claro), depois de ser financiado pelo Catarse. E é um filme, muito, mas muito bom. De certa forma ele parece que foi feito para mim: estilisticamente ele se inspira nos gialli clássicos de Mario Bava e Dario Argento, um gênero pelo qual me apaixonei e tenho mergulhado cada vez mais; e é um filme completamente, inequivocamente viadasso. Além de ser só muito bom, ele também acabou me servindo de lembrete da força que arte queer ainda pode ter.
O filme conta a história de Martim (Bruno Germano), um adolescente que foge de sua casa e vai para a casa de praia de sua tia/avó (não lembro esse detalhe, rs) que está desabitada desde que ela faleceu. Foi lá onde anos antes que ele viveu sua primeira paixão: um menino mais velho com o qual ele e sua prima passaram o verão brincando, e esse menino depois desapareceu. Tudo isso o perturba até hoje. Lá ele conhece Lucas (João Felipe Saldanha), e além de sentir uma fagulha instantânea, descobrem que estão tendo os mesmos sonhos perturbadores.
O filme é de uma imaginação constante: quando eu pensava “ah, saquei o filme, ele vai seguir nessa toada”, ele subvertia as minhas expectativas. O filme faz demais com o orçamento que teve, e como espectador não senti nenhum momento óbvio em que falta de orçamento teria atrapalhado o escopo do filme. A já citada fotografia é linda, e reforça de maneiras interessantes o desenvolvimento do filme. O filme é um horror psicológico, e o início é temperado com cenas deliciosamente lynchianas de sonhos e visões que perturbam Martim; com o progredir do filme essa estética passa a invadir as cenas lúcidas do filme, e logo fica claro qu nenhum espaço é seguro. O filme vira uma profusão de cores que não apenas criam composições lindas, mas desconcertam o espectador. Não sou crítico de cinema e não sei como comentar “seriamente”, então eu gostaria de destacar mais uma coisa: a maneira que a música é usada. Na primeira cena do filme vemos uma montagem que me lembrou a fita de O CHAMADO e o filme revela ser mesmo uma fita VHS — nela, entre outras imagens, vemos uma senhora cantando ópera. É o primeiro sinal do papel que a música terá no filme. Um fato que eu não citei é que o filme é, em partes, um musical. É a maneira que a loucura é mostrada, começando com cenas surreais do começo tornando-se musicais ao longo do filme. Daí eu destaco a cena que Martim e Lucas estão em uma festa e fazem um karaokê improvisado, e ambos dublam “A Lenda” de Sandy & Junior, que inclusive é tocada inteira no filme. Adoro o contraste entre a música europeizada que simboliza a insanidade do protagonista e a música muito tipicamente brasileira que toca na festa.
Em um momento em que o movimento de liberação queer perdeu a força de revolta que já teve e está dominada pelo neoliberalismo (leiam REALISMO CAPITALISTA do Mark Fisher), foi reinvigorante ver um filme sem qualquer remorso de ser queer e brasileiro. Que a gente não comemore mais o vigésimo “primeiro personagem gay” da Disney. Que a gente xingue o Doritos quando eles acharem muito legal se promover nas costas da parada LGBTQ mas não fizerem nada por nós. A Casa1 é sustentada por pessoas físicas, mas doar essas empresas acham muito difícil. Que a gente celebre VERÃO FANTASMA e pare de pedir peloamordedeus para a Netflix nos dar o mínimo do mínimo. Que a Netflix faça conteúdo LGBTQ porque não precisamos mais deles. Dê o seu dinheiro para o artista independente que se importa com você. A arte queer que sair da Netflix sempre estará subordinada aos interesses desse grande capital que não tem interesse em arte que sugira que o problema é a estrutura. Arte queer da Netflix inevitavelmente será assimilacionista: uma história inspiradora ou uma história de coitadinhos, reafirmando a ideia centrista que apenas precisamos nos entender melhor, nem tão homofóbico mas nem tão viado… ou seja, que a melhor coisa que uma pessoa queer pode ser é hétero.
Não é disso que precisamos nesse momento que a LGBTQfobia está em alta no mundo inteiro. Leiam esse artigo do Ben Miller sobre a reação ao tiroteio que teve em um bar queer no Colorado. Ele faz um balanço geral muito completo sobre o pânico moral que tem crescido nos EUA, no Reino Unido e que eu imagino que vai chegar aqui no Brasil em breve. Durante o governo Bolsonaro as paranóias homofóbicas perderam, um pouco a centralidade do discurso (mas não da prática do governo, como o esvaziamento do programa de combate ao HIV/AIDS do SUS), e agora que eles vão se tornar oposição novamente muito provavelmente vão voltar à tática de provocar o pânico moral. Uma resposta comum quando alguém aponta que Bolsonaro é, de forma muito óbvia, que o Jair é profundamente homofóbico e transfóbico é responderem “ah, mas mostra onde ele e o governo delem perseguiram gays”, mas agora que se tornará conveniente eles vão abandonar qualquer pretensão de razoabilidade. E o movimento queer precisa se reestabelecer como voz ativa e não na posição tadinha que passou nos últimos anos para resistir.
Viva a arte queer brasileira! Viva Matheus Marchetti! Viva VERÃO FANTASMA!
📖 Leitura extra
Esse texto do Huw Lemmey é excelente para quem souber ler inglês. Ele faz uma análise muito boa de como o stablishment neoliberal se utiliza de símbolos anti-LGBTQfobia quando lhe é conveniente, mas abandona esses gestos com a mesma desfaçatez.
🔈Para ouvir
Essa foi a música que eu mais ouvi em 2022 de acordo com o Apple Music. É boa demais. Recomendo.