espaço negativo; dificuldade como valor estético
alguns pensamentos rápidos sobre a leitura de Às avessas, de J-.K. Huysmans.
finalmente terminei de ler, uns tempos atrás, Às avessas, de J-.K. Huysmans, pela tradução dificílima do José Paulo Paes (houveram momentos que questionei meu letramento), mas belíssima. a dificuldade é completamente apropriada ao texto. o livro tem um formato muito original, o tipo de coisa que se você apresentasse descontextualizada eu acreditaria que seria um romance pós-moderno dos anos 80 (na verdade é dos anos 1880): acompanhamos os caprichos e excentricidades de Des Esseintes, um dândi, em um tom predominantemente ensaístico, com breves momentos narrativos, mas que não apresentam uma trama no sentido mais tradicional da palavra. é um estudo de personagem em que conhecemos o personagem através de suas opiniões sobre literatura (prefere os autores da decadência romana que os canônicos) e sua busca por plantas decorativas (primeiro decide usar só plantas artificiais, pois essas podem ser o exemplar mais perfeito da espécie, o ideal platônico daquela flor; depois busca plantas naturais que pareçam artificiais). eat your heart out, Bret Easton Ellis.
o personagem Des Esseintes acaba definido pelo seu contorno. fiquei pensando no papel desse espaço negativo na literatura: a questão é que eu já tinha como pressuposto que o que valorizo na literatura é sua capacidade de interioridade. o cinema pode mostrar uma situação, um livro pode explicitar o que acontece na mente e coração dos personagens durante essa situação. sem querer acho que o livro iluminou um ponto cego para mim, me mostrou uma pressuposição que eu nem sabia que fazia.
outra coisa que fiquei pensando foi na tradução do José Paulo Paes: faço a ressalva que estou falando da tradução porque ela é, no fundo, sempre outro texto, e eu não leio francês. o que fiquei pensando, no caso, é que é um livro de leitura bem difícil. de palavras para lá de rebuscadas e construções complexas, o livro não é uma leitura tranquila; e não é só questão de ser uma linguagem que já envelheceu, então para o leitor contemporâneo há uma camada extra de dificuldade, não, eu acho que é mais deliberado que isso. se forma é conteúdo, a forma dessa maneira reflete o personagem que alicerça a obra.
fiquei pensando em como dizer que é uma leitura tranquila, viciante, é um dos principais elogios feito a livros. ler Às avessas não foi nada disso. foi trabalhoso, foi na base da insistência. quando eu estava de bom humor eu parava o tempo todo para consultar o dicionário. quando eu não estava, deixava torar e tentava pegar pelo contexto o significado do que não entendia. apesar de tudo isso, não acho que foi uma experiência de leitura ruim.
a dificuldade, tanto em me forçar a consultar, quanto ao me colocar num estado zen de deichar torar, serviu para tornar o texto mais cativante, e terminar o livro foi a conclusão de todo um trabalho. não teria sido uma dedada de dopamina tão forte se esse livro fosse de leitura mais fácil. o trabalho que a leitura me deu não foi um empecilho para a experiência estética que o livro propõe, mas acabou funcionando como parte dela.
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