🗣️ Contar a si mesmo
Alguns pensamentos sobre "O que te pertence" de Garth Greenwell e escrever diários.
Eu estou apaixonado por “O que te pertence”, de Garth Greenwell, publicado aqui no Brasil com tradução de José Geraldo Couto pela Todavia. Depois de muito tempo com o livro parado no meu Kindle, acho inclusive que foi um dos primeiros, ou talvez o primeiro mesmo, ebook que eu comprei quando comprei o aparelho, parei para ler depois de ler uma newsletter do autor. O livro é sensacional. Vou escrever apenas alguns comentários sobre ele, porque há muito mais a ser dito do que ele que eu vou dar conta aqui.
O livro é centrado nos encontros entre o narrador-personagem, um estadunidense que está trabalhando como professor no American College em Sofia, Bulgaria, e Mitko, um garoto de programa que ele conhece em um banheiro público. É um relacionamento que começa puramente transacional—e nunca deixa de sê-lo, na verdade—mas as trocas se complicam. Junto do dinheiro e do sexo, algum sentimento sincero, ao menos da parte do narrador, começa a surgir, contra seu próprio bom-senso. Mitko percebe isso, e começa a reciprocar; boa parte do tempo apenas para se aproveitar do
Toda a estrutura do livro é montada ao redor dos encontros esses personagens, a maioria tarde de noite no apartamento de construção soviética do narrador, e mesmo quando Mitko não está presente, são seus efeitos que se fazem presentes ao longo do texto.
A única parte do livro que não é sobre Mitko é a segunda (de três que compõem o romance). Nela, o narrador recebe a notícia de que seu pai está morrendo, e vagueia por uma mata enquanto processa a notícia. Ele rememora sua adolescência nos EUA, quando o HIV está chegando no ápice de sua mortalidade, e vive com seu pai e a madrasta numa casa cheia de brigas. Se lembra, então, de sua grande paixão adolescente, das pequenas rebeldias que servem para compensar a submissão (e o desejo por ela), e, no fim, sua expulsão de casa e o fim do contato com o pai por décadas quando ele descobre a orientação sexual do filho. Essa parte, de maneira muito inteligente, não é uma chave de leitura para o romance: simplesmente porque encontrar A Explicação para as questões que a narrativa propõe seria muito falso, não há resposta fácil, ou sequer Uma Grande Resposta possível para a pergunta Por que eu desejo o que desejo?, que é só outra maneira de perguntar Por que eu sou desse jeito que eu sou e ajo desse jeito que eu ajo?. Essas são as perguntas que rodeiam o narrador quando ele passa metade da história procurando uma maneira de terminar com Mitko, mas nunca consegue, pois quando nos finalmentes, algo no narrador sempre o faz se compadecer pelo rapaz. A narração em primeira pessoa, então, soa muito psicoanalítica, de certa maneira, mas o momento da análise em que você reconta os eventos procurando alguma explicação mas ainda está longe de chegar a qualquer explicação para si mesmo. É o momento de olhar para si mesmo e se estranhar. O narrador decide não ir visitar o pai em seu leito de morte nem ir ao funeral.
Meu melhor amigo estava ao meu lado, e eu segurei sua mão enquanto a mulher lia os resultados e eu sentia não o que se pode chamar de alívio, mas desapontamento, ou alguma coisa misturada de modo tão desconcertante que ainda não tenho um nome apropriado para ela. Talvez fosse o caso, simplesmente, de eu querer que o mundo tivesse um sentido, e que o sentido que eu queria que ele tivesse fosse de castigo.
Garth Greenwell, O que te pertence
R: Você escreve diário?
Em resposta curta: não?
No sentido meio tradicional, de escrever todo dia, não, mas esse é e um daqueles hábitos que eu gostaria de manter com mais frequência, bem que eu gostaria de escrever com mais frequência sobre o que está acontecendo. A pessoa que mandou a pergunta eu sei que é uma grande DEFENSORA da prática. Acho muito útil fazer o sentimento passar pela linguagem (mesmo que depois fique algo meio cringe). Só não tenho muito a rotina. Gostaria.
Mas também sou da teoria de que todo mundo que escreve diário escreve com alguma fantasia de ser lido subrepticiamente. Ninguém escreve para ninguém.
Tem perguntas? Mande pelo meu CuriousCat, deixe um comentário, etc.