banalizando a escrita
além disso, perdendo as estribeiras com o conceito de "cristofobia".
inspirado no post recente da Marie Declercq, decidi ceder também à maior tendência onanista do Substacker: escrever sobre escrever — vai ser rápido, juro. queria escrever rapidinho sobre como a minha relação com tudo foi mudando, e o que tem funcionado para mim agora. o texto da Marie em questão, vale a pena a lida:
mas então, uma coisa que tem funcionado muito para conseguir escrever e ler mais é só levar tudo isso muito menos a sério. seriedade é um negócio meio paralisante. ninguém direito está me lendo, certamente nenhuma outra pessoa no mundo tanto quanto eu penso em mim mesmo, então meio que foda-se.
sou o tipo de pessoa que reflete 8x sobre qualquer decisão antes de tomá-la. passei 6 meses acompanhando a mídia sobre PC gamer antes de comprar meu computador, fiz 2 meses de pesquisa quando fui trocar de tênis de corrida, sem querer, e acabo imaginando o que a crítica literária metafórica teria a dizer sobre qualquer coisa que começo a escrever antes de terminar o primeiro parágrafo.
me reduzir a minha insignificância, nesse sentido, foi libertador. inclusive para desvencilhar a minha escrita da minha autoestima. comecei a escrever adolescente e passei muito rapidamente a me identificar como escritor, e a minha produtividade e qualidade nesse sentido passou a ser parte constitutiva de como eu me enxergava. o que não foi muito bacana quando entrei na faculdade de Letras e descobri que eu era muito mais merda que jamais poderia antes imaginar. acabei entrando numa seca criativa (e até de leitura por prazer).
isso se refletia até nas maneiras que eu inconscientemente evitava escrever. sou do tipo da ritualização excessiva de tudo. tudo tem que estar perfeito, o clima estar ótimo, a música colocando um bom clima, sem preocupações, uma meditação de 10 minutinhos antes vai bem, e daí, quando estou prestes a sair da roda de Sansara, conseguia finalmente botar umas palavras papel (ou no arquivo .docx). estava tentando me forçar a escrever só em um caderno, que fica muito desconfortável na minha mesa já abarratoda por um computador. percebi então essa ritualização como outra forma de procrastinação. estou tentando cada vez mais escrever de qualquer jeito, em qualquer lugar, da maneira que dá.
o caminho é saber que é um merda e persistir mesmo assim. é importante para mim, mas não importa. isso é tudo é diletantismo, foda-se, vamos se divertir. já estamos num momento histórico analfabeto, anyway.
pois então, eu não queria ser o tipo de pessoa que escreve resposta para colunista da Folha, mas terei de fazer isso não só porque esse artigo em questão me tirou do sério, mas porque ele é emblemático de toda uma linha de argumentação que eu não aguento mais. então me perdoem esse ato anti-estético.
o texto em questão é o: Crentefobia é preconceito socialmente aceito, escrito pelo professor de antropologia Rodrigo Toniol. se não foi um texto escrito em má fé, é um texto que revela um espírito de porco meio impressionante. de qualquer maneira, eu acho esse texto interessante porque ele mobiliza um dos principais mitos vaidosos da esquerda: que ela é iluminada e inteligente, e sua missão é, antes de tudo, compreender. eu vou argumentar aqui que, no geral, compreensão não é o x da questão; eu nem acho os pontos que ele quer que a esquerda compreenda são lá controversos: os evangélicos são um grande grupo que não é uniforme. ah é? uau.
o autor não diria que é isso o que ele está fazendo, mas na real que esse pedido de compreensão está sendo usado no texto basicamente para pedir para a esquerda calar a boca. é na verdade simples assim. o autor dedica um parágrafo a dizer “claro que o André Valadão é homofóbico, mas”, no entanto o resto do texto e dedicado a criticar a maneira que a esquerda fala dos evangélicos. todas as grandes lideranças políticas de destaque dos evangélicos são profundamente homofóbicas, mas isso não permite que digamos que “evangélicos destilam ódio”. porque o grupo tem contradições! quais o texto não aprofunda. de novo, não é um texto que tenta trazer ao leitor de esquerda algum conhecimento, ele só quer que a gente seja mais fofo com eles.
o que é um verdadeiro escárnio é o uso completamente não-irônico da expressão cristofobia, e um primeiro parágrafo que a equipara com racismo, misoginia e homofobia. eu acho que não preciso explicar porque isso é absurdo. o cristianismo é a religião dominante no Brasil desde sempre e o momento atual é de dominação cultural total dos evangélicos, em que o conceito de laicidade e respeitar o diferente já tá indo para o cacete. todo esse chororô é a fragilidade do mau vencedor.
o autor do texto escreve: “Reduzir a experiência religiosa a uma simples alienação é uma forma sofisticada de desumanização. E, mais do que isso, é inviabilizar qualquer projeto democrático que pretenda ser inclusivo.” bem que ele poderia estar aplicando essa linha de pensamento como uma defesa das religiões de matriz africana e demais pagãos que são demonizados por uma religião majoritária com enorme capital político e domínio cultural. mas não. o problema é que a gente é malvado com eles.
eu não nego que algumas pessoas de esquerda podem tratar evangélicos com certo elitismo e racismo. mas perceba que eu já posso descrever esse fenômeno com outras duas palavras muito mais apropriadas e com muito mais poder explicativo que “cristofobia”. o autor em algum momento percebeu que pegou mal e mudou na manchete e no texto para “crentefobia”. permaneço usando “cristofobia” porque acho mais próximo da real intenção do autor.
é no fim do texto que eu acho que a gente pode ver o que o autor quer: “Não se trata de ser acrítico, pelo contrário, o convite é para complexificar o debate. Nem todo pastor é vilão. Nem todo fiel é massa de manobra. E não há democracia possível se seguirmos tratando a fé dos outros como defeito de caráter.” tens o que é necessário para complexificar o meu debate? em primeiro lugar, concordo que nem todo pastor é vilão. mas muitos são. a maioria é. a maioria, especialmente considerando os de projeção e poder, genuinamente acreditam na minha inferioridade como ser humano. e concordo que nem todo fiel é massa de manobra, boa parte está verdadeiramente engajada intelectualmente com a maldade do primeiro grupo. o texto exime Os Evangélicos de qualquer agência, mas eles tem sim responsabilidade pelo o que falam e fazem. sim, apesar de toda a bancada evangélica, há também um pastor de esquerda no congresso. muito bacana! gostaria que houvessem mais, claramente seria preferível à bancada teocrática. sim, há uma minoria de esquerda no mundo evangélico. acho justo a esquerda institucional correr atrás de construir essas pontes.
a minha questão é: e eu com isso? “complexificar o debate”? com quem? para que? a gente ainda está requentando a fantasia do livre mercado das ideias? enquanto a gente fica aqui se detendo em como discutir os evangélicos do mundo das ideias, os evangélicos realmente existentes estão exercendo poder. eu não estou em debate com Os Evangélicos, eu sou gente e quero viver nos meus próprios termos e no mundo que eles gostariam de construir isso não seria possível (no mínimo); esse clamor por compreensão parece um delírio ingênuo, como se o que faltasse fosse a esquerda construir o modelo mental mais representativo para que então finalmente pudéssemos nos abraçar e cantar kumbaya. quais ideias e opiniões políticas são majoritárias e minoritárias no mundo evangélico é problema deles, eles que se resolvam. colocando nos termos mais simples possíveis: pedir compreensão é uma maneira de tentar ofuscar um conflito político genuíno. não me falta entender o mundo evangélico, me falta que seu projeto político seja derrotado. complexo que seja, o evangelismo brasileiro se forma como movimento político, e as pessoas que o compõe tem responsabilidade por esse processo como todo cidadão tem alguma responsabilidade pelos rumos de seu país. talvez não culpa, mas responsabilidade, sim.
“A regra segue sendo a cristofobia. O evangélico, no imaginário de parte da opinião pública, tornou-se sinônimo de atraso, ignorância e ameaça. Isso é confortável, porque localiza no "outro" o problema que não queremos ver em nós mesmos, mas também é perigoso. Quando o outro vira inimigo, a escuta se interrompe, e a política cede lugar à guerra moral.” a essa altura do campeonato é meio gauche ser de esquerda e ter convicções, mas eu vou dizer bem claramente: eu acho sim imoral e ignorante a homofobia. eu acho sim imoral o machismo. eu acho sim imoral o racismo. eu acho sim imoral o projeto político do evangelismo mainstream. o que falta nessa equação não é escuta. escutamos muito bem o que vem sendo dito. todo esse foco no debate deixa extremamente claro que Toniol não se importa com o poder político, com as consequências desse poder na vida das pessoas; para ele isso é tudo sobre etiqueta em redes sociais.
gostaria muito que toda essa complexidade do mundo evangélico o levasse a mudar. mas eles que se resolvam. enquanto isso permaneço me opondo.
adaptando uma fala de Belize, personagem da peça Angels in America, do Tony Kushner: “eu já vivo no Brasil evangélico. eu não tenho que gostar dele também.”
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