Apanhadão geral #1
Gravidez maldita, prisão em looping digital, teatro maluco e a mulher mais cool do mundo.
Está oficialmente a coluna APANHADÃO GERAL nessa newsletter, para de tempos em tempos falar sobre um monte de coisa que li/vi/ouvi. Aqui vai ser o espaço de juntar muitos pequenos pensamentos que sozinhos não dariam uma niuslerer mas que juntas dão um tamanho mais razoável.
No cinema
A Primeira Profecia (2024)
(dir. Arkasha Stevenson)
Quem poderia esperar algo de um filme que é a parte seis de uma série que se iniciou nos anos 70 poderia ser genuinamente OUSADA? Já adianto que não vi o original, então não tenho o parâmetro de comparação, de saber apontar como o roteiro desse se encaixa com o anterior, o que li resenhas apontando como a parte mais fraca do filme, mas o filme me conquistou basicamente porque ele é insano. Diversas vezes no cinema eu botei a mão na testa, descrente do que eu estava vendo em uma tela de cinema (ao lado do meu pai, aliás, rs). A fotografia é linda e o filme consegue combinar um estilo contemporâneo de terror com uma sensibilidade retrô que remete ao cinema dos anos 70 de maneira muito interessante. Começar com uma trama mais detetivesca que se torna O bebê de Rosemary e Possessão é genial. Nell Tiger Free dá show e Sônia Braga dá medo só de olhar. Vejam.
Fico pensando o quanto que a liberdade que Arkasha Stevenson teve ao executar esse filme dessa maneira: ser de uma franquia segura o interesse de uma grande produtora, enquanto ser uma franquia um pouco mais série B libera pressões que existiriam se, por exemplo, esse fosse a nova parte de uma franquia como O Exorcista…
(Inclusive, tem uma cena numa balada que me apresentou uma faixa de ítalo-disco da Rafaella Carrà que eu achei sensacional, chamada Rumore. Fica a dica.)
The Matrix Ressurections (2021)
(dir. Lana Wachowski)
Preciso fazer, enquanto um aficcionado por Matrix, uma rápida defesa desse filme. Mas antes disso, preciso estabelecer também que eu sou alguém com olhos e ouvidos e portanto não estou aqui para realmente discordar de muitas das críticas existentes às sequências de Matrix. O filme original meio que beira a perfeição, mas as sequências são bem menos amadas. Enquanto o primeiro é redondinho, as sequências são monstruosas, cheias de falsos-começos e cul-de-sacs, e mesmo assim eu as amo. Eu gosto da maneira que elas expandem o universo, eu gosto de muitas das cenas de ação, mesmo com o roteiro circular, a direção confusa de algumas cenas de ação e os efeitos especiais que provavelmente já não eram grandes coisas e hoje parecem jogo de PS2. Mas eu não sou cego. Eu escolho amar algo mesmo com suas falhas. Talvez seja reflexo de ter visto muitas vezes o primeiro na infância: meu cérebro é frito de uma maneira específica em que gente vestida como se estivesse indo para a Mamba Negra trocando tiro ao som de uma techneira sempre resultará em um filme legal.
Dito isso, o que eu queria argumentar aqui é que a metalinguagem que o filme opera, e que parece ser o fator mais divisivo, não é só um lampshade. Explico: lampshading é um termo criado para descrever quando um autor >reconhece que está executando um clichê ou um tropo textualmente, mas o executa mesmo assim, sem subvertê-lo<. No caso de Matrix Ressurections, o lampshade seria o jogo que Neo, reincorporado à Matrix e trabalhando como gamedev, é pedido para desenvolver: uma sequência tardia para a trilogia Matrix, que existirá apenas porque a Warner Bros. quer explorar a propriedade. Após o personagem de Jonathan Groff jogar essa bomba no colo de Neo, se inicia uma montagem em que vemos diversos trabalhadores da equipe do estúdio desenvolvimento pensando o que deve ser uma sequência de Matrix: mindfuck, bullet-time, filosofia pop, látex e couro.
O que o filme faz, então, é um enorme cockblocking de tudo isso. Lana Wachowski usa a oportunidade para recentralizar a história num ponto mais simples, mas talvez muito mais significativo (até para ela, pelo o que essa entrevista): a história de amor entre Neo e Trinity, e isso eu compro totalmente. Não é um lampshading, é uma mudança propositada de foco. É quase poético que as cenas de ação desse filme não são boas. I want what they have.
dica bônus:
Gostei de Wonka com o Thimotee Chalamet. Ele tá bom, as canções são boas (ao contrário do que os trailers mostravam, é um musical) e ele pega o espírito da coisa mil vezes melhor que aquele filme horroroso do Tim Burton. Lacrimejei quando começou a tocar Pure Imagination no final. Golpe baixo da porra.
No teatro
Codinome Daniel
Núcleo Experimental
Musical bonito e muito bem montado sobre uma figura que eu não conhecia: guerrilheiro (e talvez o último a voltar do exílio após o fim da ditadura), gay (quando isso não estava muito em consonância com ser de esquerda) e precursor da luta da AIDS no Brasil, a peça retrata a vida dessa figura com muita delicadeza, e com momentos fortes que fazem valer a pena. Mas o verbo é retratar, mesmo: o vemos posado e estático. A sensação que se tem é que essa vida e essa trajetória intelectual são expostas, mas nunca dramatizadas. Explicadas, mas não postas em jogo… Mas ainda assim, vale a pena, caso volte em nova temporada.
Fantasmagoria IV: Agora tudo era tão velho
Coletivo Ultralíricos
É meio clichê falar que uma obra é uma meditação, mas essa é de fato uma meditação sobre o que é fazer arte, que papel ela tem ou deve ter e o que é sequer construir sentido com ela. Toda a produção são só nomes fodidos, e vale demais a pena, de novo, se houver outra oportunidade (todos os ingressos para essa temporada, que está em sua última semana, estão esgotados). A peça toda pode parecer, à primeira vista, nonsense, mas de nonsense ela não tem nada. É um caos muito controlado.
(Até hoje me mordo de raiva que a versão brasileira de Lazarus, musical jukebox que, junto com Blackstar, foi o último projeto que David Bowie trabalhou, não teve nenhuma versão gravada da música. A peça teve direção de Felipe Hirsch e direção musical da Maria Beraldo, colaboração que se repetiu em Fantasmagoria IV. E a direção musical da Maria Beraldo era coisa de doido. Ela deformou de forma perfeita as canções do Bowie, adicionando glitches, dissonâncias e distorções maravilhosas. Quem viveu, viveu.)
Na música
The Collective
Kim Gordon
A mulher tá aos setenta anos lançando música muito a frente de muito jovem. Ela consegue combinar batidas trap com sons distorcidos e instrumentais de maneira surpreendente complementar e bem-acabada (com a colaboração do produtor Justin Raisen). Letras que mesclam o fluxo de consciência e o surreal. Uma canção que é tipo aquela The Man — Taylor Swift, só que boa. Ela É a mulher mais cool do mundo, não tem como.
Hora de dizer “tchau”
Se você chegou no fim dessa edição gigantesca, você é um guerreirinho e merece os parabéns. Se gostou, manda para um amigo, se não gostou, paciência (ou envie para um inimigo.) Se tem alguma dica para me dar, deixe um comentário!