Semana de dois autógrafos
Annie Ernaux, Edouard Louis, Tiago Germano, ficção, crônica e autobiografia, obviedade e obscuridade.
Esses dias li Annie Ernaux pela primeira vez. Adorei, e foi uma revelação, aquela sensação de uma porta se abrindo, mesmo. Já peguei emprestado com um amigo outro dela para continuar na obra dele mais um pouco. Tinha começado o novo da Sally Rooney, mas ele acabou passado para o fim da fila. Calhou de que essa última semana também Edouard Louis estava no Brasil para a FLIP e, na terça do dia 15, em São Paulo para uma sessão de autógrafos organizada pela livraria Megafauna no teatro Cultura Artística.
Cheguei lá já mais tarde do que eu queria, porque não vi o endereço direito na divulgação do evento e achei que seria na Megafauna. Grande erro. Cheguei suado e esbaforido no fim de uma fila enorme com meus exemplares de “O fim de Eddy” e “História da violência” na bolsa: descobri depois que se tornaram raridades (foram publicados por um selo do grupo Planeta e quando a publicação de Louis passou para a Todavia, ficaram fora de catálogo).
Fiquei com medo de ficar para fora do recinto, mas entrei, e logo antes de começar o evento a moça que fez a apresentação contou que de última hora o teatro deixou que mudassem de um auditório para 150 pessoas para a sala de concerto, que estava quase cheia. Nem eles esperavam tanto sucesso.
Fazia tempo que não lia Edouard Louis, na verdade. Li os dois primeiros e então mais nenhum. Não foi uma decisão, só não foi algo que aconteceu. Mas também nunca me esqueci do impacto desses dois primeiros livros na minha vida, as primeiras palavras de “O fim de Eddy” vivem na minha mente e como “História da violência” me ajudou quando eu estava passando por uma BarraTM. Foi inclusive o que eu disse a ele quando finalmente chegou a minha vez na sessão de autógrafos. Citando o que eu escrevi no Instagram no dia seguinte ao ocorrido: “ele se levantou, pegou o livro e me cumprimentou com seu sotaque francês: br-runô. me disse um “hello!” e eu lhe respondi “I’m sorry, I don’t speak French, but I just want to thank you for writing this book, it helped me so much when I was going through a tough time”. “Oh thank you so much, it is so sweet, i and very touched. It is not an easy an easy book”, ele me respondeu.
O que saí pensando naquela noite foi justamente na coragem que é escrever sobre si, sobre a própria vida. Digo isso como alguém que preza pela própria privacidade e que se faz um texto mais pessoal aqui nessa niuslerer já passo mal de nervoso e tensão antes de publicar e provavelmente nem vai divulgar muito tal edição. É se colocar numa posição de vulnerabilidade muito grande. Na entrevista para o Roda Viva de segunda-feira (21), Louis colocou justo isso como uma das forças da autobiografia: o choque que causa ler algo e pensar “Nossa, isso realmente aconteceu.”
De certa forma, também, não me sinto tão distante assim da autobiografia nas coisas que eu escrevo. Quando eu era adolescente, minhas primeiras tentativas de ficção foram basicamente romans à clef (não que eu conhecesse o termo na época). E mesmo quando passei a ser menos óbvio, mesmo assim estava lidando de maneiras muito diretas com a matéria da minha vida. Sempre me critiquei um pouco por isso. Não é uma forma de egocentrismo? Provavelmente. Mas se eu não for centralizar o meu ego, eu vou centralizar o de quem?
De qualquer maneira, no sábado eu fui para o lançamento do novo livro de crônicas do
. Bom, de certa forma a inovação de falar do cotidiano, dos assuntos baixos, com seriedade já não é grande novidade por essas terras. CANDIDO, Antônio. A vida ao rés do chão, etc e tal. E se ela tá viva ou morta eu deixo para vocês decidirem. De qualquer maneira: chegou o momento, depois de um bate-papo, ele leu uma de suas crônicas do livro, que tratava de um tio, já falecido. Foi muito bonito, e cheguei a conclusão que o risco é o que importa: o de chorar lendo o próprio texto, de acabar cafona, de se expor demais (e não sob uma luz muito favorável). O que conta é o texto estar bem-ajambrado. Gostei também do comentário do Tiago sobre enxergar a escrita da crônica como exercício ficcional, exagerar os eventos, etc. Todo texto é ficcional. No fim, peguei meu autógrafo.A última edição da newsletter do
(recomendo a leitura) fala sobre isso: literatura, especialmente autoficção que no fundo não é nada a não ser tediosa. É pessoal, mas não é reflexiva, não expõe nada além de um vazio. Talvez o exercício de se expor como o canalha que todo mundo é seja um dos exercícios mais interessantes de se fazer ao escrever sobre si. No fim, o texto arriscado vai ser mais interessante simplesmente por ter corrido o risco, mesmo que fracasse.Ao mesmo tempo, é engraçado como escrever ficção também é um outro tipo de pressão. Dizer “mas foi assim que aconteceu na minha vida” é um risco mas também um respaldo: escrever ficção é bancar uma série de decisões muito mais claramente artificiais. E é bom ter motivo, hein. Mesmo assim, pensar em botar em público um texto de ficção meu (minha novela SIM vem aí em breve, fiquem no aguardo!!!) traz uma sensação que imagino que seja a sensação de ficar pelado na praça da Sé.
Acho que no fundo também eu só busco subterfúgios para escrever de mim. Tentei escrever um tempo atrás um romance em que a protagonista não teria nada a ver comigo. Ficou ruim (acho que não passei do estereótipo e falhei no exercício de alteridade) e em certo momento a motivação sumiu. Começou a ficar meio boring para mim. É, Narciso acha feio o que não é espelho.
Fiquei pensando também um pouco na entrevista do Edouard Louis para o Roda Viva da TV Cultura. Um programa de televisão que só vejo comentado no Bluesky (e antigamente no Twitter). Concordo largamente com o que ele disse, mas claro que algumas coisas não se aplicam da mesma na realidade brasileira (a burguesia brasileira não é conhecida por fazer soiree para discutir Guimarães Rosa).
Enfim, o que mais me deixou reflexivo na entrevista foi um momento em que ele está falando da literatura (francesa) como sistema e ele faz uma crítica ao elogio feito a livros “que não dizem nada, em que tudo é subtexto”. Para ele, isso é um valor estético que descende de uma incapacidade da burguesia francesa de ouvir vozes dissidentes. Precisaria, então, o autor diminuir-se.
Não vou dizer que não há nada aí, mas eu truco um pouco a afirmação porque, assim: quem que não leu/assistiu recentemente obras absurdamente óbvias e que mesmo assim não param de explanar tudo. Muitas vezes gerando aquela sensação de que autor e público deveriam era formar uma rodinha para repetir: como é bom ser de esquerda. Quem que não está de saco cheio de arte didática?
Essa postura funciona para a obra de Louis porque ele tem os insights que sustentam o edifício. É uma decisão que molda toda a sua obra. Mas não sei se dá para equalizar tão facilmente o elogio do qual ele reclama com uma recusa a escutar. Fica implícito que não foi necessário dizer: é um elogio à meticulosidade da criação, que se faz entender sem ter que soletrar. Onde ele pode estar certo é que fiando essa compreensibilidade há uma ideia de universalidade, do reconhecimento da experiência, e alguém da classe dominante vai conseguir compreender sem ter soletrado para ele a experiência da classe dominada? Não sei. Talvez.
Ao mesmo tempo, a obviedade como escolha política também é claramente furada. Todo ano temos um novo enlatado midiático que se diz um grande avanço, uma obra revolucionária, por repetir à exaustão uma mensagem (verdadeira) mas óbvia como “tudo bem ser gay”. É uma ótima maneira de vender seu produto, também.
Eu não tenho as respostas. Quer dizer, acho que não tem reposta. A resposta correta. Existem obras e as escolas que se formam em torno delas, e vivemos na era da autoficção que pode ser tão vazia e formulaica como qualquer outro tipo de livro. Ficção é bacana também, sabe, gente.
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