O que o leitor faz com o livro
A papel do receptor em compreender a mensagem e uma história de leituras de "O apanhador no campo de centeio"
O que a gente mais tem, esses tempos, são obras ficcionais, e não só literárias, sendo lidas e apropriadas de maneiras completamente opostas à maneira que seus criadores desejaram: "Matrix", uma obra anticapitalista (ou o mais próximo disso que um filme de Hollywood é capaz de ser), gerando metade do linguajar da direita maluca atual, é talvez o maior exemplo disso; podemos pensar também em como "Clube da Luta", que explora o que é atraente na masculinidade tóxica enquanto exemplifica o perigo de buscar esse ideal à qualquer custo, virou filme de incel. Exemplos estão aí aos milhares.
Acho que em reação a esse tipo de coisa, por muito tempo foi comum nas chocho mídias uma ideia de um didatismo meio bizarro. Quanta gente de esquerda bem intencionada compartilhou esse meme?
O problema, é claro, que não há limite para o didatismo. Além dessa busca por claridade muitas vezes piorar a arte, ela também não é muito eficaz: a quantidade de gente burra andando por aí é genuinamente chocante. Além da burrice, há a má fé. Se quiserem que seu livro seja doutrinação gayzista, assim ele será, independente do conteúdo. Às vezes há a simples indiferença.
Uma história famosa é a da canção "Born in the USA" do Bruce Springsteen. Em 1984, o então presidente Reagan usou-a em sua campanha de reeleição, o que emputeceu o Bruce. O significado da canção não é nada ambíguo, e Springsteen se posicionou como democrata a vida toda, mas isso não importou; também não importou que ele se posicionou contra esse uso da canção logo em seguida: políticos republicanos nunca pararam de usar a canção em eventos. Pô, o Trump a usou em 2020. Talvez a desculpa de que ninguém parou a ouvir a letra funcionasse em 1984, quando a música tinha acabado de ser lançada, mas 36 anos depois, com 36 anos de controvérsias toda vez que um político republicano usava a canção, fica mais difícil alegar ignorância. O que fica claro é que as pessoas simplesmente não se importam. Não importa que a letra de "Born in the USA" é uma crítica à guerra do Vietnã e a falta de assistência social nos EUA, os republicanos acham a música um banger e querem gritar BOOOOOORN IN THE USAAAAAA para se animar para um discurso de Donald Trump.
E, acima de tudo, há uma quantidade de infinita de ideias e experiências e pensamentos que as pessoas trazem para a leitura/escuta/vista. O receptor vai reconstruir o significado a partir do seu próprio arcabouço e a variação aqui é infinita.
Esses dias comecei a reler "O apanhador no campo de centeio", de J.D. Salinger. Nem sei quantas vezes já li esse romance antes, mas fazem já uns anos que não o releio, ou tento reler. O livro acompanha Holden Caulfield, 16 anos, após ele ser expulso do internato em que estudava por reprovar em quatro das cinco matérias; ele então decide ir para Nova York, onde sua família mora, antes da hora, e passar alguns dias pela cidade antes de voltar para casa. O livro é narrado por Holden, após os eventos da narrativa, quando ele está internado em um hospital. Lembro que achei a minha primeira cópia dele numa Saraiva, e ele estava em promoção, numa época que o dólar estava mais razoável e um livro importado não era o valor de um aluguel: paguei algo na casa dos vinte reais quando tinha uns 14 anos (nossa, 10 anos atrás). Conhecia o livro pela fama, estava descobrindo que literatura era Coisa Séria™️. Acho que nessa época tentei ler, ou talvez até tenha terminado, mas lembro de achar um desafio, tanto por causa do meu inglês na época quanto por causa do inglês do livro.
Lembro então, de um tempo depois, aos 16 anos, ler ou reler o livro, e daí que a minha obsessão realmente começou. Eu me identificava 100% com Holden, sua revolta, seu sentimento de alienação, a sensação de ser muito mais inteligente que todos a sua volta, tudo ali era muito familiar para mim. Uma das principais criticas que se faziam ao livro, e especialmente no Twitter (rest in piss) gringo, ele parecia atrair um tipo de ódio muito específico, um ódio que só um livro que é leitura obrigatória no Ensino Médio pode receber, é que o Holden é irritante. Eu não entendia em nada a crítica, e ficava puto para caralho quando lia uma coisa dessas. Como que as pessoas não entendiam o Drama???
Bom, quando eu tentei reler o livro, por volta dos 20 anos, algum tempo depois do livro sair pela Todavia em tradução de Caetano W. Galindo, eu entendi totalmente a crítica. Eu acho que nesse momento eu nem terminei de ler o livro (mas os cantos gastos demonstram que eu fiquei sim andando com ele por um tempo), mas a leitura ao menos dos primeiros capítulos me causou uma reação visceral: porque percebi como esse personagem pode ser insuportável. De repente captei todas as maneiras não que seus problemas são insignificantes, mas que ele está reagindo de maneiras infantis ao mundo a seu redor — mas claro que é assim que reage dessa forma, ele tem 16 anos. Entrei numa crise absurda, e muito pouco produtiva, na verdade (eu estava menos aí para crítica construtiva e mais para autoflagelação), que eu tinha sido, e ainda era, um grande imbecil.
Pensando agora, acho que foi o momento que abandonei a revolta adolescente e abaixei o volume da minha pessoa: a meta por uns anos foi me tornar a menor pessoa possível. E nisso, claro, a pandemia ajudou, mas não foi causado por ela. Acho que uma das poucas maneiras em que eu fui um adolescente diferente que Holden é que, enquanto o drama dele, a tensão psicológica principal do personagem é a dicotomia entre um mundo adulto que o enoja, e em bom grau ele não entende, e a passagem linear do tempo que o impede de se manter em um estado infantil. Seria mais fácil para Holden se ele fosse simplesmente iludido, um adulto infantilizado.
Um dos momentos mais famosos do livro (bom, é o trecho do qual vem o livro), é quando ele está conversando com sua irmã mais nova, com quem passou o livro todo querendo falar, e ele conta para ele o que ele realmente gostaria de fazer com a própria vida: ele gostaria de ser um apanhador em um campo de centeio onde as crianças brincam, e ele as pegaria quando elas fossem cair do penhasco. Ele não fantasia com a própria infância, ou em viver novamente uma infância idealizada; ele já foi contaminado com o mundo adulto, para ele já é muito tarde, mesmo em fantasia, só o que poderia ser é o protetor da infância.
Essa é a tensão de Holden Caulfield: a fantasia da infância também foi destruída. É daí que vem todo o cinicismo. De novo, seria mais fácil ser iludido, mas o espectro de violência e sofrimento na infância rondam pairam sobre o romance. Há algo sério acontecendo na família de Jane Gallagher, mas ela não o conta; há o colega de turma em uma das escolas anteriores que comete suicídio após sofrer bullying1, há a sugestão de alguma forma de violência sexual que teria sofrido que Holden deixa como subtexto ao final do romance quando visita seu antigo professor, e o irmão mais novo dele, Allie, ruivinho que escreveu em tinta verde poemas por toda sua luva de baseball para ter o que ler durante o jogo, morreu de leucemia. Não há o momento idílico ao qual retornar. No hay banda.
Nesse sentido, Holden se coloca como cavaleiro de uma causa perdida; mas eu fui um adolescente aceleracionista. Tudo o que eu queria aos 16 anos era sair daquela bosta de colégio, ir para a faculdade, finalmente virar adulto, ter a própria independência, e bom, rs. Penso ainda de vez em quando naquela cena de Normal People em que Connell vai para a terapia.
Lembro que quando eu era adolescente, eu tinha certeza que o Holden era gay. Era, claro, projeção. Eu me identificava tanto com o personagem, com o redirecionamento da ostracização social como um senso de superioridade (é todo mundo burro e falso menos eu que sou inteligente e verdadeiro), com a sua dificuldade a entender a própria sexualidade, que a única resposta que eu tinha era que ele tinha de ser como eu. Hoje sei, claro, que repressão sexual não é exclusiva dos homossexuais. Eu tinha evidências! Algumas. Que hoje claramente não se sustentam, mas as cenas com o Stradlater2 me cheiravam a desejo reprimido e as cenas com a Jane Gallagher me soavam como uma tentativa de forçar um desejo erótico em uma relação de amizade. E, bom colégio interno. Apesar disso, sendo isso parte ou não (não) da visão de J.D. Salinger, eu fiz o que eu precisei com a narrativa dele.
Agora eu vejo gente que estudou comigo e tem enormes currículos, trabalhando em multinacionais, morando fora do país, e eu tenho uma niuslerer. Crianças cruéis e adolescentes escrotos às vezes também são inteligentes e boas pessoas. Fazer o que. Que eu não sou um gênio incompreendido eu sei já faz tempo, mesmo que tenha demorado para me livrar dessa crença que já tava fedendo, passada horrores da data de validade. No fim, penso na infância platônica que Holden busca e lembro das frases que abrem “O fim de Eddy”, de Edouárd Louis (trad. Francesca Angiolillo):
De minha infância não guardo nenhuma lembrança feliz. Com isso não quero dizer que eu nunca tenha, durante aqueles anos, experimentado um sentimento de felicidade ou alegria. Mas o sofrimento é simplesmente totalitário: ele faz com que tudo que não se enquadra no seu sistema desapareça.
Percebo então que só continuo fazendo o que já fazia: usando "O apanhador no campo de centeio" para meus propósitos. Hace tiempo que no hay banda. Holden observa sua irmã girando e girando e girando no carrossel, circular mas o ponto inicial se reencontra sem parecer que se retornou, sempre em frente, sempre em frente.
Esses dias dois amigos meus desembarcaram por aqui então recomendo que vocês se inscrevam nas niuslerer de ambos:
Então leiam Lucca e Lucas. Quase xarás.
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Bom, nesse aspecto nada mudou. Ou muito pouco. Eventos recentes, etc. De qualquer maneira, se a escola reflete os valores sociais, o que diz das nossas classes médias e altas que tantos dele colocam em cativeiros arcaicos “aprovação no vestibular”, etc. Vi um tempo atrás alguém em alguma rede social falando que rico mesmo coloca os filhos em escola Waldorf. Alguns mais tilelês, sim. O grosso ainda bota o filho no Bandeirantes. Então nem imagino como deve ser aluno bolsista em um ambiente desses.
Há algo a se dizer sobre o desempenho de masculinidade nesse romance. Não que eu que vá tocar nesse vespeiro.