Ainda em Madonnamania
Como pode uma senhora de 65 anos rebolando servir tudo para nós? Um texto autoindulgente
Terça-feira dia 30 eu acordei em profunda depressão pensando que ia perder o evento histórico de sábado. Finalmente tinha caído a ficha de que era naquele final de semana o show da Madonna — e que eu não ia. Percebi que não podia deixar assim. Entrei num certo dilema… será que ia dar para curtir?, será que é uma boa ir para o Rio de Janeiro (onde nunca tinha estado) sozinho?, etc, etc. Mas o que me convenceu de verdade a ir foi pensar em estar sábado, sozinho em casa porque metade dos meus amigos estão no Rio, abrindo uma cerveja e vendo o show pela TV, transpirando arrependimento. Daí eu falei: não, eu preciso ir. Da última vez que fui numa baladinha começou a tocar Like a prayer meus óculos quase saíram voando de tanto que estava NA LOUCURA. Não tinha como perder.
Comprei, então um bate e volta: saía de manhã de São Paulo, ia da rodoviária direto para Copacabana, aguardava o show começar, via o show, e daí voltava para a rodoviária pegar um ônibus cinco da manhã.
Fiquei pensando em quando foi a primeira vez que ouvir falar de Madonna. Essas figuras totêmicas são tão onipresentes que às vezes parece que elas sempre estiveram lá. E de certa forma já estavam, mas a primeira vez que eu me lembro de estar consciente de uma cantora chamada Madonna foi um dia quando eu era criança, não lembro quantos anos eu tinha, mas era bem criança mesmo, e eu estava no carro com meu pai (e acho que o resto da família? Mas vocês sabem como é a memória), e meu pai tinha um CD das músicas-tema do James Bond. Nessa coletânea, dentre aquele monte de canção romântica que naquela época não me diziam nada, estava incluída Die Another Day, tema da Madonna para o filme homônimo, estrelando Pierce Brosnan. (Ela inclusive tem uma ponta no filme, como uma professora de esgrima.)
Lembro de ficar obcecado com aquilo, aquela canção que não soava como nada que eu tinha escutado, e era completamente alienígena naquele CD. Para mim era tão futurista… é até engraçado porque hoje é uma canção decididamente do início dos anos 2000. Acho que talvez, de alguma forma, essa memória é a sementinha de algo que me influencia até hoje, a virada de sinapse seminal que moldou meu celébro até hoje, de alguma maneira.
Peguei então o ônibus sábado de manhã, depois de passar a semana inteira não pensando em outra coisa. Metade dos meus amigos estavam já no Rio, meu Instagram só dava fotos de caipirinha contra o Pão de Açúcar, pé na areia, e eu me mordendo de inveja. Como essa twitteira atestou, o parque Augusta estava vazio, o exôdo gay foi real, não sobrou mais homossexual na cidade de São Paulo. Mas já foi, né? Estava feliz em ver de longe mesmo, ver pelo telão, mas queria estar lá. O ônibus acabou atrasando e chegando apenas às 18h, e daí fui direto para a praia. Como já estava escurecendo quando cheguei, fui ao Rio sem nem ver o Pão de Açúcar ou o Cristo Redentor, nem de longe. Mas c’est la vie. Saí da rodoviária e fui para a estação do VLT depois de perguntar onde era para uma moça que estava num guichê do tipo “apoio ao turista”. Nunca me senti tão turista, rs.
No bondinho, tentando não olhar o celular, acabei escrevendo no caderninho que sempre carrego comigo:
“Já estou no VLT — nome carioca e chique para um bondinho indo em direção a Copacabana ver Madonna. Que alegria e ansiedade! Tentei meditar no ônibus mas não deu. Ler nem tentei.”
Estou tentando retomar a prática de meditar diariamente agora que estou diminuíndo os anseolíticos. Não está dando certo.
No ônibus dormi em preparação para a longa noite e olhei pela janela ansiosamente, apenas.
Quando desci do metrô em Copacana, as ruas estavam uma enorme confusão, já, a cada quarteirão tinha uma entrada para praia, com a polícia fazendo revista, e entrei na primeira direto. Vendo que a coisa não tava andando (aquela seção da praia já deveria estar abarrotada), fui caminhando até ver uma fila um pouco mais razoável. Uma vez na praia, posso tentar chegar o mais próximo que der do palco, em vez de ficar esperando de fora.
Foi o que eu fiz. Andei até chegar onde ficaria mais chato ficar me metendo no meio da multidão, e parei ali. Fiquei relativamente perto, no fim das contas, fiquei ao lado do segundo telão da direita, de oito no total, então fiquei a apenas um quarteirão, mais ou menos, do palco. Eu conseguia ver o Copacabana Palace piscando de diferentes cores.
Depois de um tempo ali, parado, sozinho, comecei a bater um papo depois que uma moça tropeçou e esbarrou em mim. Acho que a situação que tava até meio surreal até então tomou concretude para mim quando outra moça, que estava ali no mesmo grupo também, me perguntou:
“É a sua primeira vexx no Rioã?”
Acho que conheci melhor a figura Madonna da mesma maneira que conheci tanta música quando eu era pré-adolescente: pulando de vídeo em vídeo aleatóriamente em tardes entediadas no Youtube. E, não sei explicar, mas pensando nisso a memória que me vez é a de estar na casa da minha avó, num daqueles dias insuportáveis de quente que apenas Presidente Prudente pode proporcionar. É um calor seco, abafado, o sol bate 90º graus na cabeça e penetra mais fundo. E eu ficava numa salinha, ouvindo coisas diferentes. Não tenho certeza se foi mesmo na casa da minha vó, vai saber, mas na minha memória foi assim. Eu vi o clipe de Like a Prayer e fiquei com o queixo batendo no teclado. Adorava quando um clipe me deixava assim. (Assim que eu acompanhei o clipe de Judas da Lady Gaga e toda a controvérsia que tele por ela ter lançado um clipe de temática cristã na Páscoa.)
Foram em tardes assim que eu conheci muita coisa que moldaria meu caráter: desde as supracitadas Madonna e Lady Gaga até Nirvana e Arcade Fire, Amy Winehouse. (Lembro inclusive de ver o anúncio da morte da Amy no Jornal Nacional com a minha vó, ela sentada na poltrona dela de sempre, e eu fiquei impactado porque era a primeira morte de celebridade que o morto era alguém que eu conhecia e me importava.) Mas lembro de uma sensação específica, também: que a música pop era mais o meu segredo, não, ninguém podia me ver assistindo o clipe de California Gurls (ignorando que era o maior hit), que, como menino…
E isso não foi algo que ninguém me disse, mas foi algo que eu soube instintivamente. Ou ninguém disse, mas estava de alguma maneira por aí. Então para os amiguinhos eu era rockeiro mas escutava nos fones de ouvido, também, Madonna. Só fui admitir a coisa mais normal do mundo, gostar de música pop, um pouco mais velho, quando já tinha saído do armário para os meus amigos, e já estava me acostumando a fazer coisas que considerava femininas. A posição delas de apoio à comunidade LGBT+ inclusive era desafiadora mesmo para mim, que lendo ou vendo coisas sobre o ativismo gay no geral e o ativismo contra o HIV em específico, era tomado por aquele ódio reflexivo: eu não quero ser que nem essa gente.
Quando finalmente começou o show e ela entrou cantando Nothing Really Matters, arrepiei até pelos que eu não sabia que eu tinha. E continuei mais ou menos assim o resto do show inteiro. A seção do show que mais me tocou, eu acho, foi o segundo momento, em que há a sequência que contém Live to tell e termina com Like a prayer. Esse momento captura alguns dos sentimentos mais importantes da obra da Madonna: revolta e libido. Se Live to Tell, com as homenagens às vítimas da AIDS (aqui com a inclusão de brasileiros como Cazuza, Caio Fernando Abreu e Sandra Bréa), em Like a Prayer a culpa cristã e o libido libertário encontram a revolta contra a Igreja. A letra, uma símile entre ajoelhar para rezar e ajoelhar para… outra coisa, é cantada após toda uma introdução com dançarinos pendurados e se retorcendo num carrossel com cruzes, e imagens do rito católico são invertidos para o sinistro. E gosto que a raiva também vem acompanhada do tesão: é o tesão como força motriz transformadora, força vital que tá atrás até da raiva justa contra uma Igreja que simultaneamente, nos anos 90, desencorajava o uso da camisinha enquanto condenava as vítimas do vírus ao inferno. Diga o que quiser, mas a Madonna sempre soube usar da imagem não só como meio para vender a música mas como também um elemento que completa e enriquece o significado da canção: o conjunto dizendo mais que suas partes constituintes. E ela continua em domínio dessa habilidade.
Se o estardalhaço que os conservadores fizeram depois do show, especialmente desse trecho e alguns outros de teor mais sexual, é que não avançamos em nada, de certa forma, mas também que o que ela está fazendo ali continua urgente. Aos quarenta anos de carreira. Quem mais pode dizer isso? Quem das novas gerações de cantores pop está fazendo isso? Talvez ninguém mais tenha sequer a força. Quem tem o tamanho apesar e porque é capaz de ser controversa com propriedade hoje? Até a música pop encaretou, em algum nível. Por exemplo, a Olivia Rodrigo estava distribuindo pílulas do dia seguinte e anticoncepcionais nos shows dela, mas arregou depois de virar Assunto. Se qualquer coisa ficou comprovada dada as reações, é que a posição da Madonna frente prazer e sexo continua provocadora. Inclusive fica bem claro que toda a campanha que houve para cancelar o show e os ataques que vieram depois são totalmente movidos à misoginia e homofobia: cancelar jogos do Brasileirão em solidariedade com o RS ninguém quer, né?
Fico pensando se não passamos por um momento em que achávamos que era meio passé fazer essas provocações. Já fizeram, todo mundo já sabe que tudo bem ser gay (ou, ao menos, todo o público de música pop), mas num país em que o fundamentalismo evangélico avança à galope, ainda não é nada trivial. Por mais que já estejamos carecas de saber, temos é que lustrar a careca ainda.
E tudo valeu a pena em ir nesse show, mas o momento que mais me deixou pensativo, e de certa forma, inspirou esse texto, foi o momento em que após The Beast Within, Madonna começou a cantar Die Another Day (que inclusive foi o MOMENTO KABBALAH do show, o que foi meio hilário. No telão (mas não na transmissão) que ela faz aquele universal símbolo com os dedões e os polegares sobre a própria vagina e se sobrepunha à imagem da Sefirot, um dos círculos alinhado com as mãos (e, por extensão, com outra coisa). Preciso admitir que gosto da coisa meio confusa meio new age que a Madonna passou a ter depois do Ray of Light: não só porque é um grande disco, mas porque sinto algo em comum. A minha criação católica, eu acho, foi menos estrita que a dela (para mim ficou só a homofobia sem muito do resto do fervor religioso), e também sim alguma vontade de buscar algo, o que quer que seja. Talvez se eu tivesse o dinheiro dela (e mais capacidade de me convencer de qualquer coisa) eu também acabaria bebendo água de Kabbalah (rs). Nem sabia que ela ainda estava nessa) e eu lembrei de ouvir aquela música quando criança. Num show com tantos medleys, fiquei até chocado que aquela foi cantada inteira. Ela até cantou ao vivo (e não numa das faixas gravadas que acompanham) a ridícula (mas maravilhosa) letra: Sigmund Freud, analyze this.
Posso morrer feliz. Fico feliz de ter presenciado esse momento, ter vivido isso em conjunto e lembrado que de vez em quando é muito bom ser gente e fazer parte da espécie humana e ver uma artista cuja obra me importa tanto e me moldou tanto: sobre sexo, relacionamentos, sobre arte em si, etc. E é meio piegas estar escrevendo textão sobre diva pop. Mas tudo bem. Viver é perigoso e o risco de ser cafona eu aceito. E talvez tivessem coisas mais importantes para falar, sobre as inúmeras tragédias acontecendo no momento, mesmo sobre a Madonna, seus posicionamentos, etc. Mas não quis falar disso. Quis falar de arte, e tentar falar um pouco sobre o que ela diz para nós. O porque, no fim das contas, gostamos de algo tão improdutivo. Porque no fundo eu não estava vendo um ser humano naquele palco, não no fundo. Estava vendo um símbolo que me diz muita coisa. E essa aura é também meio inenarrável, mas a gente tenta. Depois de ver a Madonna com a Pabllo Vittar vestindo camisetas da seleção brasileira eu quase fiquei com vontade de sair na rua de verde e amarelo. Mas só quase. Para finalizar, então, preciso citar o homenageado Caio Fernando Abreu escrevendo sobre a primeira passagem da Madonna no país, no Estadão:
“Com ou sem vírus e crise, Madonna dá vontade dessa coisa sagrada: viver. Por isso mesmo, Deus a abençoe. E pouco importa se Ele não existe, porque ela também não existe. Existem símbolos. São eles que mobilizam e, mesmo quando não bastam, são necessários. Melhor ainda se forem belos. E, repito, do bem. Do lado certo da luz, compreende?”
Saí com os pés parecendo que eu tinha torcido algo, a saída dali foi um perrengue, cheguei exausto em casa, importei areia da praia na minha meia e não vi o Corcovado, mas valeu a pena estar ali, com os pés em Copacabana, sentindo o cheiro da maresia e compartilhando daquele momento com tanta gente.